SOBRE A AMIZADE,
OU
A QUEM SERVIR A CARAPUÇA...

Não me venham cá falar de amor, pensando que de amor romântico ou de paixão se faz a nossa vida afectiva porque a paixão não se cimenta no amor, nem em coisa alguma: é areia, mais ou menos molhada, mais ou menos vidrada, ou, para utilizar uma imagem mais comum, é fogo de palha, com mais ou menos palha subjacente.
Por vezes existe, mesmo, aquela profunda ligação entre as pessoas, entre as almas, que designamos por Amor – a que os leitores de Alberoni, e de outros “estilistas” das emoções sentimentais, convencionaram chamar “amor romântico”. A verdade é os amigos também se amam (é essa a parte lixada) – para o melhor e o pior – e, ao contrário do casamento, às vezes nem a morte, do dito, os separa, sendo o "divórcio" entre Amigos legalmente menos burocrático mas emocionalmente tão ou mais complicado... é como um funeral sem corpo: o fantasma permanece em torno da nossa vida ao longo de muito tempo, muito tempo.

Mas isto dos amigos é lixado!

Quando começo a pensar no que distingue os Amigos daqueles que não se podem considerar como tal, esbarro sempre com o meu racionalismo. De facto, racionalmente, não consigo sistematizar uma classificação que me sirva, como um livro tão ecléctico que parece não ter lugar adequado em qualquer das prateleiras da biblioteca.

Vem isto a propósito de um dilema que me tem acompanhado ao longo da vida adulta e que agora, sabe Deus (e sei eu) por quê, me volta a assaltar: O que devemos ou não perdoar, ou talvez melhor dizendo, tolerar aos Amigos?

Se são Amigos têm um estatuto especial que lhes permite atitudes, erros, deslizes que não admitiríamos a um qualquer comum mortal afectivo e, naturalmente, usaremos de maior tolerância, de alguma condescendência se necessário, de toda a compreensão. Sim, está certo.

Mas há um reverso desta face...
Se são amigos, e porque o são, exige-se mais... bilateralmente, de nós e deles.

Se são amigos têm um estatuto especial e há coisas que não podem ser toleradas, com as quais não pode ser usada a mesma condescendência que se poderia aplicar a um qualquer mortal afectivo, que não são compreensíveis à luz de uma relação de amizade séria, verdadeira.

Parece-me que a resposta reside numa interiorização, a tempo inteiro, a corpo inteiro, e de todo o coração, da noção de Respeito. Um respeito profundo, enraizado, que faça parte indissociável de uma relação de amizade, sempre, a todas as horas, sob todos os ângulos, ignorando todos os pretextos, desculpas ou conveniências. Não é, nem se prende com, a presença; É mais, é mais difícil, é mais raro e valioso, é mais reconfortante. É a única espada com vitória garantida sobre a hipocrisia e a mentira, é o único cálice de confiança sempre disponível e renovada.

Não pretendo inferir que a Amizade é feita de respeito, apenas defendo que sem este, consciente, profundo e permanente, a amizade perde a maiúscula, é superficial e quebradiça, é transitória. Até pode ter graça mas é potencialmente perigosa, sobretudo para quem nela se apoiar. Todas as outras variáveis que a vão construindo – como a empatia, a confiança, a vivência, os comuns interesses, a compreensão, a generosidade, a lealdade, a cumplicidade, etc., etc. – assim como o tempo que esta leva a construir e, sobretudo, a revelar-se, estarão sempre em equilíbrio instável entre a rocha e o abismo. Sem respeito, a afectividade é nervosa, frequentemente enrolada em cinismo, gera fraqueza mental e emocional, gera impaciência e descrédito, noites brancas e pensamentos negros.


Voltando ao meu dilema, ainda não consegui estabelecer uma fronteira, talvez nunca consiga, é uma linha difícil de traçar com rectidão e justeza. Implica o julgamento de outros, de situações e circunstâncias. Implica construir uma escala de qualidades e prioridades de aspectos que não são quantificáveis.
É urgente que o faça? Não, de todo – o solúvel dilui-se... Mas sei que, mais tarde ou mais cedo, um dia acordarei virada para um lado diferente e já não me importará estabelecer qualquer fronteira, nem de que lado da linha deve ficar a tolerância, será indiferente. Eu sei, já passei por lá... Mais de uma vez.

4 comentários:

  1. Quase

    Um pouco mais de sol - eu era brasa,
    Um pouco mais de azul - eu era além.
    Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
    Se ao menos eu permanecesse aquém...

    Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
    Num grande mar enganador de espuma;
    E o grande sonho despertado em bruma,
    O grande sonho - ó dor! - quase vivido...

    Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
    Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
    Mas na minh'alma tudo se derrama...
    Entanto nada foi só ilusão!

    De tudo houve um começo ... e tudo errou...
    - Ai a dor de ser – Quase! -, dor sem fim...
    Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
    Asa que se enlaçou mas não voou...

    Momentos de alma que, desbaratei...
    Templos aonde nunca pus um altar...
    Rios que perdi sem os levar ao mar...
    Ânsias que foram mas que não fixei...

    Se me vagueio, encontro só indícios...
    Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
    E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
    Puseram grades sobre os precipícios...

    Num ímpeto difuso de quebranto,
    Tudo encetei e nada possuí...
    Hoje, de mim, só resta o desencanto
    Das coisas que beijei mas não vivi...

    Um pouco mais de sol - e fora brasa,
    Um pouco mais de azul - e fora além.
    Para atingir faltou-me um golpe de asa...
    Se ao menos eu permanecesse aquém...

    ResponderEliminar
  2. Anónimo... Talvez.

    Acertaste num dos meus poemas favoritos, eu que quase não sei poesia de cor, esta sei, "par coeur"

    Acertaste na "ilustração", sem imagem de olhar, com imagem de entender.

    Obrigada.

    Talvez eu quase saiba quem tu és... ou talvez não...

    "Se me vagueio, encontro só indícios..."

    Quase me pareces um "cavaleiro" recém chegado de outro Reino e (também eu) gosto de te ver por aqui.
    Volta sempre, sim? Não pernaneças aquém...

    ResponderEliminar
  3. A pele porosa do silêncio
    agora que a noite sangra nos pulsos
    traz-me o teu rumor de chuva branca.
    O verão anda por aí, o cheiro
    violento da beladona cega a terra.
    Cega também, a boca procura
    trabalhos de amor. Encontra apenas
    o nó de sombras das palavras.
    Palavras... Onde um só grito
    bastaria, há a gordura
    das palavras. Palavras -
    quando apetecem claridades súbitas,
    o sumo estreme, a ponta extrema,
    do teu corpo, arco, flecha,
    corola de água aberta
    ao fogo a prumo do meu corpo.
    Do chão ao cume das colinas,
    eis as areias. Cala-te.
    Deita-te. Debaixo dos meus flancos.
    A terra toda em cima. Agora arde. Agora

    ResponderEliminar
  4. Céus!
    Razão tinham os gauleses...
    Um dia cai-te o céu sobre a cabeça, não que a pancada te cure mas talvez atenue...
    Vá lá, desta feita não era nada contigo mas fazem bem as "claridades súbitas".
    No fundo todos "buscamos a Luz"...
    Conserva os "bons costumes".
    Beijinhos meus.

    ResponderEliminar