Voltava de um jantar cerca da 1h e picos; fui deixar uma amiga junto ao carro dela a poucos minutos de minha casa.
Por qualquer razão, provavelmente porque o Anjo da Guarda de alguém assim o conseguiu, ficamos uns momentos a conversar dentro do meu carro. Fazia um frio de rachar, o termómetro do carro indicava 5ºC.
Aparecido do nada um Senhor muito idoso, talvez rondando os 90 anos, chegou-se ao carro e ficou a olhar-nos. Olhei para ele tranquilamente... Tinha um aspecto invulgar...
Sim, podia ser o Pai Natal. Olhos claros mas profundos, de uma meiguice e tristeza inultrapassável; bem vestido, barba bem cuidada e aparada. Abri a janela e perguntei:
"Posso ajuda-lo?"
Do fundo do peito veio-lhe um lamento, implorado:
"Levem-me convosco... Não me importa para onde vão, levem-me convosco". Assim, sem mais.
Fiquei sem saber o que pensar, menos ainda o que fazer. Tentando perceber o que estava a acontecer respondi-lhe tão mansamente quanto possível:
"Hoje não posso, talvez outro dia. Vá para casa hoje que está tanto frio e já é tão tarde..."
"Ora..", respondeu-me, ou talvez nem isso, parecia mais pensar alto, "Se eu pudesse (ou soubesse, não percebi).
Valha-me Deus pensei... A conversa repetiu-se e eu tentava raciocinar.
A minha amiga deu-me um toque no braço e murmurou:
"Acho que o senhor está perdido..."
"Está perdido e deve ter Alzheimer", disse eu.
O Senhor começara a afastar-se atravessando a rua direito a três rapazes de aspecto pouco recomendável.
Saímos as duas do carro. "Não o deixes ir embora, vou ligar o 112".
Ela trouxe-o de volta, lentamente, de braço dado, enquanto eu explicava à polícia o que se passava e onde estava. Uma angústia.
A polícia disse que enviaria um carro de imediato.
Convidamos o Senhor a sentar-se connosco no murete que separa o passeio dos poucos metros ajardinados.
Perguntei-lhe o nome, não sabia. Lá se lembrou que se chamava Manuel, nada mais.
A minha amiga perguntou-lhe por filhos, mulher, família... Disse não ter ninguém. Morada? O nome de uma rua? Nada! Que aflição...
Voltei a ligar para a polícia, confirmaram-me que estava um carro a caminho, que enviariam uma comunicação de reforço.
Eu olhava o Senhor Manuel de alto a baixo:
Bem vestido, lavado, tratado, com uma aliança e um anel de ouro com uma pedra escura e rasa que me pareceu um anel de brazão - não quis ver de perto com medo de o assustar, ainda mais do que já estava. Tinha um bom relógio no pulso, uma "parka" verde de aspecto novo e de boa marca. A situação denunciava-se nos sapatos: as meias mal calçadas deixavam ver os tornozelos até aos pés e os atacadores não estavam atados, tinham sido metidos para dentro dos sapatos bem engraxados.
"Resolveu sair, tirou as pantufas, vestiu o casaco e esgueirou-se..." pensei recorrendo a memórias de situações semelhantes.
"Tem fome?" , perguntei-lhe.
"Tenho muita, e tenho muito frio... Ali dentro do vosso carro é que eu ficava bem..."
Sentámo-lo no carro. Ele murmurou para consigo que mais valia morrer.
"Então Senhor Manuel, a vida é assim, tem dias maus e dias bons mas vale a pena vivê-lo todos, não é?", disse eu tentando acreditar que era verdade. Não respondeu, estava a olhar para onde tinha o pensamento...Longe, longe.
"Parece um monumento à Tristeza", disse eu à minha amiga que estava de lágrimas nos olhos.
Chegou a polícia. expliquei o que se passava. Perguntaram-me se ele trazia alguma identificação. Respondi que não sabia, não lhe tinha tocado senão para o ajudar a entrar para o carro.
A agente deu-lhe as boas noites e disse-lhe: " Vá Senhor Manuel, vamos até à esquadra ver se descobrimos onde é que o Senhor mora".
"Para a esquadra?", como quem achava que a agente tinha endoidecido, " Não, eu estou aqui bem, vou com esta menina".
Lá lhe expliquei que ninguém o queria prender ou fazer-lhe mal, que ele precisava comer, descansar um bocadinho para ver se se lembrava de mais qualquer coisa.
"Sim, está bem", disse-me o Senhor Manuel olhando-me fundo olhos nos olhos, "mas eu vou consigo". Colocou as mãos cruzadas sobre o guarda chuva, assim à laia de bengala, olhando em frente aparentemente calmo, educado e irredutível.
Perante isto decidi-me a leva-lo à esquadra. Despedi-me da minha amiga e segui o carro da polícia, rezando para que ele saísse do carro de livre vontade.
Lá fomos, ouvindo música clássica, sem palavras, cada um com os seus pensamentos.
Ao chegarmos o Senhor Manuel permanecia imóvel dentro do meu carro. Disse-lhe que lhe iam dar qualquer coisa para comer e uma bebida quentinha... A polícia interrompeu o trânsito para lhe dar todo o tempo que precisasse para sair do carro em segurança, foram pacientes e amigáveis.
Ele lá se resolveu a sair, ou melhor, resolveu deixar que o ajudássemos a sair, conformado e pouco convencido. Lá foi, amparado sem olhar para trás, indiferente.
Identifiquei-me e disse que no dia seguinte contactaria porque queria saber o que acontecera, o que aconteceria. A jovem agente respondeu-me que deixaria uma indicação para que me fossem prestadas todas as informações que eu pedisse.
Meti-me no carro direita a casa, triste, revoltada, preocupada e dando graças por ter estado no sítio certo à hora certa.
Quem seria o Senhor Manuel? Como viveria? Com quem? Que vida o trouxera ao longo dos anos até uma situação tão frágil, solitária, perigosa e revoltante?
Tentei dormir em paz, não foi fácil.
Hoje liguei para a esquadra. Após alguns momentos de busca de informação e confirmada a minha identidade disseram-me que o Senhor Manuel Fulano de Tal havia sido encaminhado para o Hospital Curry Cabral numa ambulância do INEM, sem problemas de oposição, e que se encontrava internado devido a ligeira desnutrição, desidratação e falta de medicação para a doença de Alzheimer. A sua morada havia também sido localizada.
Agradeci, liguei à minha amiga dando-lhe as notícias, respirei e fui tomar um duche bem quente e longo.
Agora o outro lado...
Embora muitas pessoas desconheçam existem à venda em muitas farmácias, particularmente nas associadas da Associação das Farmácias de Portugal, colaboradora do programa "RUMO SEGURO", umas pulseiras com um sistema de localização GPS destinadas à localização permanente de doentes de Alzheimer.
O que me parece absurdamente revoltante é que não existe qualquer protocolo de apoio, ou mesmo, ao menos, de divulgação por parte do Ministério da Saúde, de comparticipação então muito menos.
Diversas Associações particulares são colaboradoras, diversos laboratórios farmacêuticos, a Liga dos Bombeiros Portugueses, a PSP, a GNR, o INEM.
O nosso Estado não, o Governo tem mais o que fazer e é muito mais giro e proveitoso andar a brincar aos "Magalhães", sobretudo se tivermos em consideração quem os produz.
As Juntas de Freguesia colocam-se "de fora", adiam, dizem "pois, pois", apesar de serem contactadas nesse sentido (sim, sei do que falo)
Não quero rogar pragas a ninguém mas se o paizinho ou a mãezinha da senhora ministra da saúde ou do nosso José, ou mesmo do senhor Presidente da Junta, etc., etc., desaparecessem de casa sem saberem quem eram ou onde estavam e passassem fome, frio e um sem número de perigos, talvez as ilustres figuras sofressem um "bác" que os acordasse.
No entanto a Sociedade Civil tem a sua grande quota parte de responsabilidade; tem de se mexer, protestar e exigir.
Esta aflição, esta angústia, pode, de repente, à saída de qualquer bem disposto jantar ou à saída de casa logo de manhã, se tropeçarmos em alguém que caiu de cansaço à nossa porta, tocar a qualquer um de nós, não apenas a quem perde de vista a mãe, o pai, ou qualquer outra pessoa querida que tenha a enorme infelicidade de sofrer de demência.
E depois?
Algumas informações:
http://industria.netfarma.pt/index.php?option=com_content&task=view&id=820&Itemid=49
http://www.publico.clix.pt/Sociedade/alzheimer-as-pessoas-passam-ao-lado-pensam-que-sao-semabrigo_1401541
http://www.alzheimerportugal.org/scid/webAZprt/defaultArticleViewOne.asp?articleID=343&categoryID=808
http://www.rumoseguro.pt/ (PONTO NOTÍCIAS)
http://saude.sapo.pt/prevenir/artigos/geral//saude/ver.html?id=811366
http://www.solidariedade.pt/sartigo/index.php?x=3745
http://www.inosat.com/particulares/child-locator/doentes-de-alzheimer.aspx?gclid=COzp9vuX5p4CFZKhzAodnSaIMg
http://www.keruve.com/funcionamiento/
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Infelizmente esta será uma de muitas histórias similares... fiquei com o coração muito, muito pequenino e dói-me a alma - o mero relato teve este efeito; o sentimento originado pela vivência da situação há-de ser um milhão de vezes mais intenso.
ResponderEliminarO Manuel encontrou um anjo... deambulou até encontrá-lo, e reconheceu-o mal o viu!
Deus te abençoe, minha querida, pela luz que trouxeste, ainda que por momentos, à vida dele...
Sandra, o senhor Manuel encontrou duas pessoas que são pessoas, e só.
ResponderEliminarTu farias o mesmo.
Mais estranho é termos ficado dentro do carro, naquele sítio, a caminho das duas da manhã, com o LR, a palrar dentro do carro... Essa é que me é mais difícil de engolir... Mas foi assim
Mas lá que dou graças por nos termos cruzado, pois dou; não quero pensar na alternativa.
Há pessoas e Pessoas... Sorte a do Senhor Manuel, ter encontrado quem encontrou.
ResponderEliminarObrigado por partilhares connosco!
No mais, informação acutilante, como de costume.
Vou divulgar o mais possível.
Beijos!
TP
Meu querido TP,
ResponderEliminarlong time no see, ist'é-qué uma gaita...
Um beijo para ti, um beijo a essa Senhora que tanto me cai bem cá dentro.
Vamu-lá-véri se nos refazemos de tal distância tã prelongada