Não tenho vindo até aqui, há mais de uma semana que estou de férias, ao que parece...
Estou de férias mas ainda não me apercebi totalmente do facto, não nasci equipada com um botão de "ligar/desligar"; ainda não me compenetrei de que esta espécie de limbo em que me tenho vindo a movimentar durante esta última semana, corresponde àquilo a que se designa por "férias"; mais de uma semana já passou como um "click", um "click" estranho, em câmara-lenta, e só hoje consegui acordar a uma hora "normal" para férias, só agora começo a desligar o "despertador" da ansiedade, do medo de acordar tarde.
Começou pela saída de casa que foi uma perfeita loucura: um dia estava a trabalhar, a saltar de um lado para o outro fazendo mil coisas necessárias, a entrar e a sair do carro como se brincasse às ventoinhas; no outro, sem transição ou 24 horas de sossego mínimo, estava a atirar com tralha para dentro das malas tentando convencer-me de que tinha uma noção suficiente do que estava a fazer. As roupas, ou sapatos, as bugigangas e artigos de higiene, meus e da criança, as duas mochilas de "brinquedos imprescindíveis", a comida do cão, as tigelas, a escova, os ossos, os medicamentos - dele e meus e da criança e para os imponderáveis acontecimentos.
Lá pelas sete e muito da tarde, depois de assegurar a sobrevivência das plantas, dos peixes e dos pássaros, deixei-me convencer pelos olhos silenciosos do meu filho a partir, exausta.
Parti depois de um enorme e sincero abraço: "Sempre vamos agora mãe? A sério? És a melhor mãe que existe"
Isto de "ser a melhor mãe que existe" tem custos...
Quando abri as malas e comecei a arrumar as tralhas nos armários verifiquei, sem espanto, diga-se, que tinha rebocado comigo um conjunto de espécimes citadinos nada a propósito e que a maior parte daquilo que realmente me faz falta ficou em casa à minha espera. Creio que é o que se poderá chamar um bloqueio do quotidiano. Paciência, ninguém morre disto.
Mas esta coisa das bagagens e das tralhas que transportamos connosco fez-me pensar...
Ao longo da vida vamos acumulando bagagem - alguma, mais cedo ou mais tarde, deixaremos quieta num canto, esquecida ou preservada, outra porém transportamos connosco, sempre, por vontade ou por hábito, por necessidade ou afecto, consciente ou inconscientemente.
Uma coisa é inegável: a bagagem pesa.
Algumas das "coisas" que transportamos têm o peso reconfortante dos cobertores numa noite fria do pino do Inverno ou oferecem-nos a segurança de uma botija de oxigénio extra quando mergulhamos nas profundezas, sejam estas quais forem; outras ainda trazem-nos à memória o peso doce de um filho adormecido ao nosso colo.
Mas muita da "bagagem" que transportamos connosco sobrecarrega-nos com pesos que nos recusamos a largar como se ao fazê-lo estivessemos a cometer alguma espécie de traição, a nós ou a outrém, ou ainda algum acto irracionalmente incauto. O que teimamos em não querer esquecer, o que nos recusamos a deixar partir, o que atiramos para detrás das costas mas retemos por lá arrumadinho numa mochila invisível.
O bom e o mau que compõem as 365 páginas de cada ano da nossa vida, umas mais preenchidas outras quase em branco, estão lá, no nosso livro, impressas sem rasuras ou emendas; depois podemos dar-lhes as voltas que quisermos, reescrever capítulos inteiros, inventar outros desfechos, adicionar ou retirar personagens - mas é bom que tenhamos em mente que se trata de outras páginas correspondentes a outros dias, o que ficou para trás "não se perde nem se ganha, apenas poderá transformar-se", a maior parte das vezes uma transformação meramente ilusória; na vida, como em quase tudo, a transformação advém da evolução, não apenas de um acto de vontade.
Muita da "bagagem" que transportamos com tanto apego feito de amores, ódios, saudades, medos, vitórias, palavras por dizer e outras que gostaríamos de ter calado, e de milhentas outras nuances de vida, são na verdade pesos mortos que muitas vezes nos arrastam o passo, nos retêm em terra, povoam os nossos sonhos ocupando o espaço do "mais longe, mais alto".
Na vida os "ses" pouco ou nada contam, apenas servem, na melhor das hipóteses, como exercícios de raciocínio criativo.
Não é útil nem eficaz sobrecarregar-mos a alma com aquilo que já não faz parte de nós. E a questão é exactamente esta: abrigado em nós ou deixado algures, em algum recanto do caminho, largado com desprezo ou depositado com todo o carinho, tudo o que vivemos até ao momento presente faz parte da nossa vida, para o melhor e para o pior, não desaparece, não é apagado. Se é importante, recordado ou esquecido, estará entranhado em nós, se pelo contrário, não passa de uma gota de água no oceano será diluído e insignificante, ainda que exista.
O que faz hoje parte de nós é feito do pedaços da nossa vida, claro, mas não precisamos de nos sobrecarregar transportando-a permanentemente connosco.
Não trairemos o nosso amigo se deixarmos partir o momento em que nos vimos pela última vez nesta vida.
Não esqueceremos as palavras que precisávamos ter dito sobre um qualquer assunto que nos parece inacabado.
Não reporemos a justiça onde esta faltou no dia em que sentimos uma revolta surda que ainda nos mói o coração.
Os nossos amigos, os que o são, serão sempre nossos , por muitos telefonemas que não façamos, por muitas ausências que tenhamos, por muitos anos ou vidas que se entreponham;
Os outros, os que se vão esfumando, deixemo-los ir sem mágoas, guardemos as páginas que nos deixaram e fechemos o livro.
E mais quantas enumeradas situações que ensombram a nossa Paz de Espírito, enublecem a nossa alegria, inquietam as nossas noites despertas.
Tudo estará lá, no livro da nossa vida, no dia em que precisarmos, não é necessário viajarmos com a "biblioteca às costas"; 365 páginas por ano é muito volume, basta-nos um pequeno caderno em branco para irmos preenchendo a cada dia, com palavras novas. E liberdade de Ser
O resto... o resto é espuma e pó.
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