Há uns 15 dias fui jantar com uns amigos a uma tasca com pretensões a restaurante na Calçada de S. Vicente, ali mesmo abaixo do Mosteiro.
Por lá fazem um arroz de pato só justificável pela defesa da saúde do hipertenso: eu nunca tinha visto arroz de pato com lasquinhas de cenoura (!!!) a fazer de chouriço pelo meio do arroz, o pato a saber a pato cozido, sem ter sido bem escorrido e passado por um forno demasiado forte e demasiado rápido, para tostar a superfície e pode seguir para a mesa dos doentinhos, quase sem sal como recomendam os entendidos, em doentes, claro. O meu caçula cheirou o bicho e ripostou que não queria comer aquilo... Maus hábitos...
A dose de sardinha assada não chegava à meia-dúzia de peixitos - cinco chega muito bem, a sardinha é saudável mas com moderação...
O conviva que se sentou à minha esquerda pediu filetes de sardinha fritos. Aquilo sim era bem servido: já não sei se trazia três se quatro, mas como os filetes eram feitos com sardinhas escaladas (abertas ao meio), a travessita vinha bem composta.
O comparsa à minha direita pediu uma espécie de entrecosto - aquilo a que se chama "piano" - e como é um tanto "esquesitinho com a comida" queixou-se de que aquilo estava salgado (devia estar destinado à mesa dos hipotensos...) e que estava muito seco... Bem, pelo menos devia estar bem servido porque pelo menos os ossos, não reparei se mais cobertos se mais roíditos, ficaram no prato.
Pedimos um jarro de tinto e lá veio o raquítico com cerca de um palmo de altura, medindo pela minha mão de rapariga maneirinha, incluindo base e bucal; o precioso líquido era um 'cadexinho acre para o meu gosto bem treinado mas talvez fosse só carregado no Touriga...
É um gosto ver a nossa divinal gastronomia assim cuidada, ainda para mais num local artilhado à clientela turística que anda por ali incauta a calcuriar "do Castelo até à Graça" durante os meses estivais.
Mas nem tudo foi mau... O dono da casa, talvez farto de estar sempre calado olhando os seus clientes a conversar, era uma simpatia, cheio de vontade de comunicar com os seus semelhantes, era só uma questão de lhe dar o mote.
Na televisão discretamente ligada com o som sensatamente baixo apareceram as primeiras imagens de uma ligação directa à praça de touros do Redondo para transmissão da tourada. De imediato a imagem deu um pulo e apareceu o resumo da volta a Portugal em bicicleta. Ah não, aquilo acompanhado pelo arroz de pato que teimava em não desaparecer do meu prato ainda que regado por conversa animada, era demais para uma mulher só. Lá manifestei ao proprietário que aquilo dos jovens a pedalarem em calções não estava em consonância com o ambiente e que a tourada seria bem mais a propósito. O cavalheiro assentiu ainda que manifestando a sua discordância relativamente a tal espectáculo. Compreendi, dei-lhe razão, em grande parte, e a outra, a parte restante, é aquela que, apesar de muito, me leva a gostar imenso de toureio a cavalo.
Lá conseguimos ir dando umas olhadelas às lides, mantendo a conversa animada e acabamos de jantar com uns pasodobles taurinos em música de fundo.
Posto isto resolvemos que os whiskys pós-prandiais seriam servidos em minha casa.
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Chegados ao meu doce lar, distribuídos os copos, apontamos o canal televisivo à vila de Redondo dispostos a ver o resto da tourada entre conversa e o tilintar do gelo; apercebemo-nos então que se disputava o troféu "Melhor Lide a Cavalo" dessa noite.
Foi quando que "a besta" se revelou: o tal Tito Semedo permitiu que o seu nobre cavalo fosse colhido - até aqui são coisas que acontecem, ossos do ofício - E o que fez "a besta"? Desmontou? Foi ver se o seu companheiro de lide, do qual tanto depende a sua vida - profissional e literalmente - estava ferido, magoado? Foi trocar de cavalo imediatamente? Não, nada disso. "A besta" continuou a tourear, entre umas poucas palmas, presumo que sobretudo de alívio, e prolongados assobios até cravar o ferro que tinha na mão, , só então lá se dispôs a trocar de montada.
O nobre animal que "a besta" montava ficou visivelmente magoado na mão esquerda e saiu da praça a coxear.
(No final da corrida, quando da atribuição do troféu, "a besta" fez um favor a si próprio, ficou-se pela entrada da arena junto às tábuas não acompanhando os outros cavaleiros ao centro.)
Face à minha revolta, e a generosíssimos insultos, a minha amiga que estava essa noite em minha casa perguntou-me se eu tinha visto o que o cavaleiro João Salgueiro tinha feito há tempos após um touro, daqueles a sério com 602 Kg, ter colhido o seu cavalo. Eu não tinha visto, não sabia de nada; a minha amiga enviou-me depois as imagens.
João Salgueiro pode não ter tido a atitude mais sensata, de facto, mas foi sem dúvida a mais humana, a mais compreensível, a de um verdadeiro Cavaleiro que ama os seus cavalos e está pronto a defende-los como estes nobres animais defendem quem os monta.
Grande João Salgueiro!
A diferença entre um Homem e uma Besta não são os cornos nem as patas.
Ficam dois curtos vídeos que ilustram bem quem é quem.
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