A LEGISTA E O ROBALO

Como se me tivesse caído sob os olhos de propósito, acabo de dar de caras com uma bem humorada notícia, ou talvez melhor dizendo, um bem humorado comentário a uma sequência de notícias sobre o mesmo facto, facto esse, ao que parece, bastante subjectivo. Esta "sequência", que chegou para três dias dedicados a manhoso assaltozeco sem vítimas e malogrado nos seus intentos, bem podia servir de "ilustração" à deliciosa fábula que até aqui trouxe ontem, na sua forma rebuscada de transformar um acontecimento quotidiano sem ponta por onde se lhe pegue numa "notícia" de mediática divulgação nacional com contornos de caracterização política.
Eu não gramo o Vara (nunca me deu nenhum robalo) mas o desgraçado teve azar quando foi ao Centro de Saúde...
Passo a transcrever o artigo que bem poderia ter por título «A fábula da Legista e do Robalo»
(apraz-me particularmente o pormenor de se tratar de uma médica legista que tratava do Vara - sem comentários negros...)

A título de curiosidade deixo também um link a um blog (sobre o qual não faço comentários porque não seria de bom tom) que publica uma "coisa" sobre esta notícia que demonstra inegável boa-fé e objectividade na escolha da foto para acompanhar os seus escritos.
Onde é que este blogista terá ido buscar a foto? Ora, boa-fé e objectividade é o que por aí não falta... Pois pasme-se, ao irrepreensível "Correio da Manhã".


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«O pingo doce da notícia»

«Há dias li que uma médica de Lisboa - um detalhe essencial - tinha assaltado uma ourivesaria de pistola de pressão de ar, embora tivesse usado gás-pimenta para aturdir a funcionária. Percorri a notícia até ao fim e ainda fiquei a saber que o assalto acontecera na Ourivesaria Antiquorum - "uma das mais caras de Lisboa" -, e no penúltimo parágrafo acrescentava-se, em três ou quatro palavritas sem mais explicações, que a dita médica sofria de problemas psiquiátricos. Em nome do rigor jornalístico, descrevia-se o método usado para o assalto, o desenrolar trepidante do mesmo e uma série de pormenores relevantes desta notícia de cariz geográfico.

No dia seguinte, outro jornal apresentava a notícia sob um ângulo também ele notável. A médica, afinal, não era uma médica qualquer, era - pasme-se - a médica de Armando Vara, o famoso socialista e ex-banqueiro amante de robalos. Lida a prosa, percebia-se que, em Fevereiro, Vara ultrapassara outros doentes num centro de saúde graças à ajuda desta médica que, esclarecia-se mais tarde, não era, na verdade, sua médica pessoal (é médica legista, trata de cadáveres). Apesar desta pequeníssima contradição, a notícia mais do que compensava o deslize ao contar que a assaltante tentara apoderar-se de três pulseiras e de duas argolas de ouro e que, num incrível volte-face clínico (médico que vira doente), padecia de um infeliz nódulo pulmonar. Detalhe valioso para compreender esta notícia de evidente cariz médico e político.

No dia seguinte, a história continuou o seu périplo de curvas largas e aterrou num telejornal. O repórter de serviço recuperara a informação avançada pelos dois jornais, mas omitira os problemas psiquiátricos para nos conduzir onde queria. O assalto não era um simples assalto desmiolado, era o reflexo da crise e a prova de que a pobreza atinge toda a gente - o jornalista dizia, com desprezo, "até as classes sociais ditas altas!" Neste ambiente de faroeste, contava a peça, são vários os casos de gente licenciada que se vê atraída para o mundo do crime. Números para defender a tese? Zero. Exemplos? O de um engenheiro que assaltara uma velhinha para comprar um pacote de leite.»

André Macedo - in "Dinheiro Vivo" - 04/01/2012


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