A gente sabe que os "Brits", de modo geral e bastante disseminado, não gostam de estrangeirismos lá na terra deles; estrangeiros toleram ou não se importam sob as condições correctas, consoante os casos, mas lá essa coisa de "Normas europeias", sejam elas quais forem e mesmo que os favoreçam, aplicadas imperativamente lá no sagrado território é " é quite unpleasant; depois até podem adoptar algumas, como as aplicadas à segurança alimentar, p/ex., mas porque querem e são "deles". Isto e, não menos, a sagração do populismo-da-moda, foram os factores decisivos para, em números redondos, ser gerada a grave clivagem de 50%+1 brexetiers e 50% remainers. Esta clivagem tomou proporções desmesuradas e em 2019 não é mais uma "clivagem", é uma verdadeira falha tectónica sob uma pressão avassaladora. Saiu do controlo racional, do privilégio do superior interesse nacional e tornou-se uma luta clubista tendente à cegueira, gerida por emoções fortes e interesses de poder pessoal. É um desgosto ver a pátria da fleuma contorcer-se asfixiada em guerrilhas absurdas.
Primeira lição, a aprender e decorar: uma decisão que tenha como consequência aspectos tão profundamente mutantes de uma vivência nacional quanto os abrangidos pelo "Brexit" não devem ser sujeitos a referendo que não exija uma maioria qualificada, 50%+1 não funciona.
Segunda lição: o "a gente depois pensa como" também não funciona; a previsão minuciosa é fundamental.
No meu humilde entender, que não sou cidadã do UK, um segundo referendo impõe-se desde há muito e, ao contrário do que politiquices partidárias badalaram mediaticamente, Corbyns e Mays, nada nisso seria um desrespeito pela vontade popular expressa, bem pelo contrário. Bem, mas o que eu penso sobre a questão não tem a menor importância (o que me aborrece mas aceito confrangida)
Porém...
Aaaahhh, porém, se os estrangeirismos são tolerados, foram tolerados durante 65 anos, há algo que os Brits não toleram - não toleram mesmo: um ditador. Nem sequer um ditadorzeco.
A Constituição do Reino Unido é um conjunto de documentos, leis, tratados e convenções, não existe enquanto um documento escrito no qual assente toda a norma constitucional do reino. Mais. A mãe constitucional - a Magna Charta Libertatum- apelidada frequentemente como mãe de todas as Constituições, data de 1215 e surgiu como forma de limitação do poder absoluto do rei sujeitando-o à lei. Concretamente do rei João e à forma como tomou o poder após a morte de Ricardo-Coração-de-Leão.
Nada disto é irrelevante hoje. Quando uma Constituição assenta numa Lei-Mater com mais de 800 anos e em convenções (para além da lei e jurisprudência que é evolutiva), há uma absoluta necessidade, e exercício, de profundo respeito pela convenção, pela boa-prática, pela dignidade e carácter; So very british! Contornar as convenções com espertezas e e jogos políticos de cintura é um suicídio, uma ode à vergonha.
Quase todos os cidadãos do Reino Unido sabem este capitulo da história: o que é a Magna Carta, como e porque surgiu. E Boris Johnson deveria saber que a coisa não correu nada bem ao Rei João, nem mesmo matando Artur, o sobrinho que lhe estava no caminho para o trono.
Para se fazer uma entrada de leão, um "Do or die", um "No ifs or buts", há que ser um leão... Ou um tigre, ou um elefante, ou qualquer outro bicho com poder real, indiscutível, alicerçado.
O poder sonhado por um menino loiro que frequentou Eton e que queria ser, segundo as suas palavras, "the king of the world" não chega.
O poder do primeiro-ministro de um Estado com 67 milhões de cidadãos nomeado por 92,153 membros do Partido Conservador é curto.
O poder de um líder que na véspera do referendo Brexit tinha dois artigos de opinião opostos, escritos para o Daily Telegraph, para escolher qual havia de dar à estampa consoante o resultado do referendo, é trémulo
O poder de um homem que expulsa de um partido político membros eleitos para um parlamento porque se opõem a uma manobra política sua, é reles.
Um badameco que põe os seus sonhos de glória no pedestal tendo plena consciência (badameco mas não burro) de que está a fazer perigar a integridade do Reino Unido - ao ignorar as brechas que se alargam relativamente à Escócia e à Irlanda - não merece ser sequer funcionário público do reino, muito menos seu primeiro-ministro.
Dear Bo-Jo, uma entrada de leão-impostor é, mais tarde ou mais cedo, seguida de uma saída de sendeiro-desembuçado. Terceira lição.
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