Então quero eu dizer que a culpa do que se está a passar é de Trump?
Não, infelizmente não é toda dele. Começa aí, desenvolve-se aí mas não acaba aí. A palavra dada é para ser honrada mas ab-so-lu-ta-men-te nada prendia o presidente dos EUA, qualquer presidente, a um acordo com os Talibã que, além do mais, foi factual e indiscutivelmente mil vezes desrespeitado e que,tenha-se presente, nunca foi assinado com a finalidade, ou a mera perspectiva, de ser respeitado
Enquanto vice-presidente Biden opôs-se declaradamente a Obama quando, em 2009, este decidiu, e bem, aumentar o contingente de tropas americanas no Afeganistão; e mais tarde por três vezes (2014/15/16) adiar a saída dos EUA do Afeganistão por considerar que seria "pior a emenda do que o soneto"
Não me passa pela cabeça julgar Biden pela opinião contra que manifestou em 2009:
O seu filho Beau prestava serviço no Iraque, onde esteve e voltou a estar sendo condecorado com a Estrela de Bronze, a Legião de Mérito e, postumamente, com a Delaware Conspicuous Service Cross, que é "concedida por heroísmo, serviço meritório e realizações notáveis"; Como é sabido Beau morreu com cancro e Biden ter-lhe-á prometido, em palavras ou pensamento, acabar com a interminável guerra
Eu tenho um filho. Se estivesse nas minhas mãos acabar com uma guerra onde ele estivesse ou pudesse vir a estar, dificilmente ultrapassaria a possibilidade de equacionar acabar com ela. A guerra não é apenas a morte à espreita, a assombração da dor, a guerra é a travessia do Inferno. Sei que não é assim que uma questão desta magnitude deve ser equacionada mas sei também que não se pode enaltecer a faceta profundamente humana de uma pessoa e exigir-lhe que não a possua quando não é conveniente. Biden é, desde sempre, um acérrimo defensor da manutenção do diálogo e da diplomacia, foi o senador que mais acordos conseguiu com o Partido Republicano pela sua teimosia e perseverança: "keep talking with the other side when it's difficult, that's why you must talk".
Há situações em que a perseverança já não passa de teimosia. Biden, ao contrário de Trump, não negociou com terroristas mas acreditou que o governo afegão poderia fazê-lo, e vencê-los.Enquanto vice-presidente a decisão não lhe cabia a ele e, como lhe é habitual, expressou exactamente aquilo que lhe ia na cabeça.
Mas agora a decisão cabe-lhe e as suas decisões afectam o mundo
Que Biden queira que os EUA saiam do Afeganistão... pois que saiam, mas há decisões não podem ser tomadas "porque eu quero" nem "porque eu disse que o faria". Para se levarem avante têm de ser conciliadas com a realidade, sem ignorar a realidade.
O que está em causa não é a retirada do Afeganistão, o que está em causa são as consequências presentes e, sobretudo, as futuras de tal retirada. A questão é que essa retirada, como está à vista, não poderia ser feita em dias, nem em semanas, nem provavelmente num só mandato presidencial. A planificação da retirada de um território minado de terroristas, que têm como finalidade a fundação de um Emirado Islâmico, tem de envolver a ocupação do vazio criado por essa mesma retirada, e a criação de condições que possibilitem tal preenchimento
Ah e tal, esta guerra não iria ser vencida... A pior das tretas justificativas
Esta guerra não era para ser vencida, nem tão pouco se estava em guerra com o Afeganistão, a permanência naquele território tinha como objectivo servir de travão à re-instalação da al-Qaeda, à fundação do Emirado Islâmico.
E resultou. E o Afeganistão mudou, não o suficiente mas mudou: construiram-se escolas, universidades, campos agricolas, estradas, as mulheres puderam passar a trabalhar e a ser independentes da presença de um homem, nasceram meios de comunicação, media, internet, surgiram várias ONG's nos domínios da saúde e muitos outros.
O Afeganistão passou a ser um Estado laico, libertou-se da lei da sharia.
Mais de 50% da população afegã tem menos de 18 anos!!! Isso é um bom investimento, inegavelmente.
Resultou até se institucionalizarem as tretas da guerra perdida, até se apresentar o abandono como um facto, sem planeamento, humanidade ou esperança. O tempos medievais bateram à porta e foram entrando a cada dia um pouco mais
Ah e tal mas esse preenchimento do vazio compete ao povo afegão... Estamos outra vez a brincar, por certo, qual povo afegão?
O Afeganistão é um território de 38 milhões de pessoas, das quais apenas cerca de 5 milhões em Cabul, sub-dividido em 34 províncias que se estendem entre montanhas que são muros, culturas e tribos, guerrilheiros e traficantes, pobreza e deserto.
O presidente Ashraf Ghani foi eleito em 2019 por 50,6% dos votos, dito assim até soa bem mas... Votaram cerca de 2 milhões de eleitores, ou seja 20% dos eleitores inscritos e menos de metade dos que haviam votado em 2014 (7 milhões). Ghani, viveu nos EUA, foi professor na Universidade .Johns Hopkins entre outras, trabalhou no Banco Mundial, regressou ao seu país provavelmente cheio de boas intensões, propondo-se combater a galopante corrupção.
Agora pergunto eu, como pode um homem que se propõe dirigir um Estado laico num país sem qualquer unidade nacional, ocupado por fanáticos religiosos, pobre e largamente medieval, pejado de jihadistas armados e financiados, propor-se manter o poder se combater a teia de corrupção hierarquicamente tecida, se não fizer vista grossa ao modus vivendi dos saquinhos, sacos e sacões azuis de tudo o que tem uma réstia de um qualquer poderzinho, dos funcionários manga de alpaca ao sargento mais longínquo?
Não estou a defender Ghani mas há que entender situações e contextos antes de vociferar ataques.
Ah e tal, os militares afegãos fugiram, entregaram-se, não lutaram...
Foi? A responsabilidade é deles?
Os militares afegãos não estavam a ser pagos porque o dinheiro dos seus salários era dividido entre quem lhe punha as garras, não tinham munições pela mesmíssima razão, milhares de armas foram vendidas, tinham de pagar os seus camuflados, muitos caminhavam com sapatos de ténis porque não havia botas. Em 2019/2020 viram os líders dos seus parceiros americanos fecharem uma cortina sobre o governo afegão e sentarem-se à mesa com os Talibã para negociações que culminaram no malfadado Acordo de Paz que estabelecia a retirada de uns e a vigência dos outros; o governo afegão não foi ali metido nem achado. Era esse governo que presidiria ao combate em que arriscavam a vida? Por alma de quem? O poder estaria entregue a quem combatiam dentro de meses. Em 2020 uma lista nominal de 5 000 prisioneiros jihadistas Talibã foi cumprida e os terroristas que os militares haviam prendido foram libertados, ao abrigo do Acordo-do-Tanto-Faz. As suas famílias viviam em risco, muitas foram assassinadas, como vários pilotos da força aérea afegã - alvos particularmente apetecíveis. Muitos militares foram sitiados nos seus quarteis até que a fome os levou a abandonar os seus postos. Ah e tal, os militares afegãos fugiram, entregaram-se, não lutaram...
A embaixada dos EUA em Cabul foi fechada. Porquê? Foi o trauma da fuga da embaixada em Saigon em 1975? Provavelmente. É difícil e requer alguma imaginação o paralelo mas isso será outra novela. Mesmo em Saigon alguns funcionários e outros profissionais resolveram permanecer para garantir condições de e o Presidente Ford assinou e garantiu o plano de evacuação, que foi cumprido. A verdade é que outras embaixadas de aliados da NATO em Cabul permanecem em funcionamento mínimo, o embaixador do Reino Unido foi o primeiro a declarar que permaneceria enquanto possível e necessário.
Estando a retirada prevista até 31 de Agosto por que foi entregue a 1 de Julho ao governo afegão o aeroporto/base militar americana Bagram Airfield com capacidade para receber os maiores aviões militares ?
Por que não foi estabelecido um corredor de segurança entre o centro de Cabul e o aeroporto comercial uma vez que a entrega de Bagram Airfield o transformou na única saída do país? Para evitar confrontos? Que diabo, obviamente que os Talibã não querem confrontos e seria mais fácil evita-los num corredor de segurança do que na loucura da cidade atravessando múltiplas zonas patrulhadas por guerrilheiros à deriva sem supervisão de chefias até, dificilmente, se chegar e conseguir entrar no aeroporto,
Porque não foram fornecidos atempadamente vistos ou meros salvo-condutos aos colaboradores afegãos - os ditos "interpretes" - e suas famílias que permanecem em pânico com a espada de informadores, guias e espiões sobre as suas cabeças?
Tudo isto irá passar, quando chegarmos aos primeiros dias frios já o Afeganistão estará mais longe e os olhares desesperados que nos entram em casa pelas janelas dos noticiários estarão esquecidos pela maior parte de nós. Tudo isto ficará como o testemunho de uma situação mal avaliada, mal tratada, mal concebida.
Quando passar o "agora" virá o "depois". E depois? Depois dos amargos de boca, do pânico, das aflições, o Afeganistão ficará entregue aos Talibã sem terem de se preocupar com confrontos, a atenção do mundo irá diluir-se em outras questões (como aliás tem estado diluída até aqui), as riquezas do país (ópio, heroína, ouro, cobre, lítio, entre outras) correrão directas para os seus cofres e o Emirado Islãmico florescerá numa quase legitimidade libertadora... A Fénix negra levantará vôo
E depois?
Nem vale a pena fingir que não sabemos.
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