Estou metido na cama há dois dias, motivado a permanecer mais um par à conta de uma infame gripe que me atropela o corpo. Ah, mas não o espírito! Embora não seja politicamente correcto, estranhamente, sinto-me muito acordado e activo. Talvez a droga me dê efeitos inversos aos habituais em situações similares: durante as últimas 48horas tenho vindo a consumir anti-piréticos, anti-histamínicos, antibióticos e um chá esquisito que a senhora chinesa que se arrasta cá por casa, considerando que o meu casulo é o emprego dela, me garantiu ser “anti-bicho”.
Concluo que a minha inusitada boa disposição se deve ao chá.
Verdade seja dita, não consigo pegar num livro mais de três minutos sem me sentir disléxico e tenho o sono perturbado pela agitação febril.
Não leio livros e durmo pouco. Sobra-me o tempo, é uma sensação estranha.
Uma vez que as alternativas não são muitas agarro-me sedento ao que me resta – escuto música, passeio pela rede global, penso, na medida do possível.
Já visitei os “blogs” dos amigos deixando um ou outro rasto escrito, na sua maioria pequenos comentários. De vez em quando faço uma longa pausa e deixo que a música me traga recordações que não afloravam à consciência desde há muito tempo – é uma técnica que uso quando preciso descansar mas não quero adormecer.
Uma das canções que ouvi, na rádio, logo a seguir a um noticiário, foi uma que sei agradar-te especialmente. Costumavas ter uma cassete no carro com canções do Aznavour e esta era uma das tuas favoritas, outras mergulhavam-te em melancolias nem sempre bem vindas, dizias. No entanto a tua cassete veio por acréscimo, a recordação que originou toda esta conversa foi outra:
Um cinzento fim de tarde de Dezembro, por esta altura, fui ter contigo, e outros amigos, ao “bar do costume”. Enquanto esperávamos por eles, para o nosso jantar natalício, estranhei que o nosso “barman” tivesse aumentado o volume de som da música ambiente tão acima do habitual. O Aznavour cantava alto e bem “Que c’est triste Venise” – afinal era a pedido que Charles cantava tão alto: um grupo de amigas, também já costumeiras à hora do aperitivo, acompanhavam-no em diversos tons de afinação. Continuámos a palrar as nossas novidades até que, alguns minutos depois, a canção mudou. Tu paraste de falar, ou de me ouvir, não me lembro, levantas-te os olhos e os cantos da boca aos primeiros acordes da tua “Aznavourice” favorita. Porém a coisa não ficou por aí. As amigas continuavam a cantar, agora animadíssimas, faziam uma espécie de “chorus line” perto da porta.
Não sei o que te motivou, se os atropelos que faziam à letra se o francês mal amanhado ou se simplesmente não quiseste inibir a tua realíssima gana: desataste a cantar, levantaste-te, abriste os braços e, divertidíssima caminhaste ao som da música até perto delas. A espécie de “chorus line” era então isso mesmo, uma linha de coro e eu era amigo da artista. Indescritível! Poderia tentar adjectivar por mais cinco ou dez linhas que creio que não conseguia dar uma ideia viva do “show”, inesquecível!
Perdoa-me se sou indiscreto ao contar aqui esta minha recordação; atrevi-me porque um destes dias, num e-mail, dizias a propósito dos “Blogs”, que estes servem, entre outras coisas que não te interessam, para “exprimir opiniões e sentimentos, criticar, aplaudir, publicitar, falar das pessoas de quem gostamos, daquilo que nos toca, etc. Quem não quiser dar-se a conhecer não deve fazer um blog de carácter pessoal, é melhor que se dedique às vendas pela internet”.
Esta pequena história conta um bocadinho de ti que quase sempre anda escondido mas, querida amiga, como diz o povo e acho ter razão, o que é bom é para se ver.
Em retribuição da tua canção de natal, aqui no blog, deixo a minha prenda para ti – sei que te fará sorrir, e creio que não só, "avec ton air canaille, canaille"... É só carregares no 4